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sábado, outubro 15, 2016

Trabalho


Aos cinco meses sua mãe descobriu que seria então uma menina, a alegria e magia da revelação durou apenas os instantes em que os pais saíram e divulgaram para seus conhecidos:
- E uma menina.
- Eita que vai matar o pai de ciúmes.
- Vai passar de consumidor a fornecedor? Parabéns.
- Eita, vai ter trabalho.
Após a revelação chá de bebê, coisas fofas e belas, laços, fitas, sapatinhos, tudo tão lindo, tudo tão feminino, por fim, a celebração perfeita para receber uma menina.
Com exatas 39 semanas de gestação, eis que nasce uma bela criança, tinha traços delicados, olhos marcantes, todos que a conheciam ficavam encantados com sua beleza e doçura, todos sem excessão repetiam ao pai:
- Essa vai dar trabalho. Prepara a arma papai.
Isabela sempre pensava sobre as historias que sua mãe contava sobre a sua espera, todas as fotos de infância tão bonitas sempre eram manchadas com a presença de um parente que apontava o dedo e afirmava o quão trabalhoso era ter uma filha, como a mesma devia ser protegida, preservada, guardada, preparada para a vida  feminina enfatiza o quanto uma mulher precisa ser recatada, bela, não necessariamente dona de casa, mas tão digna de respeito, quase se igualando a virgem escolhida por Deus.
- A alegria de ter uma menina é sempre abafada pela sensação de que não somos bem vindas, afinal, o que diabos significa trabalho para essas pessoas? Será que meu pai deveria ter desistido de mim assim que teve a péssima noticia de que eu seria uma menina? Queria tanto entender o que é ser menina para só assim entender que mulher eu posso ser.
Pensava sempre sobre essas coisas em que uma mulher não poderia pensar, ainda mais depois que lendo um livro, por curiosidade na biblioteca, leu a seguinte frase: "Ninguém nasce mulher, torna-se mulher...".
- Seguindo esse pressuposto eu posso não ser uma mulher se eu quiser? Gostaria tanto de deixar de ser trabalho para ser solução, ou ao menos dar orgulho e não preocupação aos meus pais quando eu saiu para trabalhar, ou passear ou estudar.
Se olhava no espelho e sempre se odiava, pois ao mesmo tempo que gostaria de ser daquelas mulheres perfeitas e desejadas, calava seu desejo com a figura da menina sem graça que só queria não chamar atenção. Não gostava de pensar na sua sexualidade, pois desde muito cedo fora ensinada que havia tempo certo para isso, não deveria desejar o que podia fazer ela se tornar a escória indesejada, antes tinha de ser recatada.
- O que é esse recato se não uma borracha de se apagar sonhos?
Aos 16 anos conheceu seu primeiro namorado, rapaz direito, de família, trabalhador e muito bem afeiçoado. Ela pelo desejo de se tornar adulta e fugir daquele mundo de paredes de vidro onde não podia pensar, foi se envolvendo cada dia mais e, quando se deu conta, já estava casada, mesmo sem saber muito bem o que aquilo queria dizer.
Na sua primeira noite de amor não conseguia entender o que tinha de acontecer, decidiu aceitar o que viria, já que então se tornaria algo completo, pois não compreendendo suas  leituras achava que a partir do sexo iria entender se realmente era mulher ou se dentro dela morava um outro ser.
- Um mostro, foi tudo que vi em cima de mim, por isso fechei os olhos e chorei baixinho, mas parece que isso o excitou e cada vez mais forte ele me penetrou. A cada movimento  eu sentia dor por dentro, acho que roubaram minha essência com o gozo que dele escorreu.
Ela então tinha 22 anos e todos os sonhos de amor destruídos em um único ato. Depois de tudo nenhuma palavra de amor, antes lhe veio apenas dor abdominal e a fala sonolenta do marido que dizia:
- Você vai me dar trabalho até ficar boa nisso, mas vai acabar gostando, tenho certeza.
Chorou a noite inteira, seu sonho de liberdade morreu com a palavra trabalho, seu desespero crescente sempre aumentava noite adentro. Nunca quis dar trabalho para seus pais, nunca quis desistir do amor na primeira tentativa de intimidade, sempre quis saber o que era ser mulher, contudo ao experimentar o que diziam ser uma boa mulher teve vontade de morrer, ou fugir para dentro de si mesma e nunca mais voltar.
Dormiu sem sonhar, sem chorar, apenas dormiu porque tinha de fazer algo para não pensar em trabalho.
Ao acordar o homem notou que sua mulher dormia profundamente, era um quadro muito bonito admirar seu sono, ele sentia, pela primeira vez amor por ela, não apenas desejo de conhecer seu corpo imaculado. Era verdadeiramente bela, era muito feminina, chegava a cheirar a felicidade. Abraçou a moça que estava com a cabeça virada de lado e só então notou como ela estava fria. Chacoalhou seu corpo, chamou por seu nome, fez de tudo para que ela lhe respondesse, mas como não obteve resposta chamou por socorro.
Quando os paramédicos chegaram, notaram o frasco de veneno que tinha rolada para debaixo da cama, ao lado um bilhete com apenas uma única frase: ''NÃO MAIS DAREI TRABALHO PARA NINGUÉM".
No velório, o melhor amigo do viúvo deu os pêsames e comentou ao longe com uns amigos:
- Bem que avisei que esse desejo de se casar com uma virgem frigida ia dar nisso, um trabalho desnecessário.
Quanto a sua mãe permanecia de pé, com o livro que encontrará no antigo quarto da filha, a alma dolorida e o coração a se perguntar: - Por que ela não conseguiu entender as palavras?
Chorava por si, por sua filha e, principalmente, por nunca ter conseguido demonstrar para ela o quão precioso pode ser nascer e escolher ser mulher.